Balanço da experiência em Inglaterra
Esta é a nossa quarta época. A primeira foi na Championship, que é totalmente diferente da Premier League. Quando decidimos abraçar este projeto, acordamos para uma realidade totalmente diferente. Tentámos ver o máximo de jogos possível. E foi uma realidade que nos deixou apreensivos, pela maneira como as equipas abordavam o jogo. Tomámos, no entanto, a opção de manter o nosso processo de jogo. E, obviamente, tentar ajustar alguns detalhes. A partir daí fizemos uma época muito boa. Mesmo os jogadores que estavam habituados a um determinado estilo de jogo conseguiram elevar o seu rendimento para outros patamares. Posso citar o caso concreto de jogadores que estiveram connosco no FC Porto, como o Rúben Neves e o Diogo Jota. Acho que foi um estilo de jogo que, mesmo para eles, obrigou-os a subir mais um degrau na sua carreira desportiva. E depois fizemos a época que toda a gente sabe, com alguma tranquilidade, sempre em primeiro lugar. Mas foi uma época desportiva em que terminamos todos muito cansados. Porque é bastante desgastante devido ao número elevado de jogos consecutivamente, sem tempo de descanso. Portanto, foi uma época que não nos deu tempo para pensar, sequer, que estávamos aqui sozinhos.
Em relação à segunda época, curiosamente alguns jogadores até já comentaram que parece mais fácil jogar na Premier League do que na Championship. Obviamente, há muita qualidade, os jogadores decidem mais rápido, decidem melhor, mas os níveis de agressividade baixam. Conseguimos manter uma base, que vinha da Championship, e, ao nível do scout e recrutamento, identificámos peças fundamentais para conseguirmos acrescentar essa qualidade ao nível do jogo. Foi uma época muito boa, em que conseguimos o acesso à Liga Europa. Na época seguinte, mantivemos o nível anterior mas, infelizmente, na fase final, perdemos o acesso à Liga Europa. Agora estamos numa quarta época, com novos objetivos, a tentar um novo ciclo e manter o mesmo estilo de jogo.
Adaptação à cidade de Wolverhampton
Normalmente, para os treinadores a primeira experiência no estrangeiro é sempre a mais difícil. No meu caso em concreto, já tinha passado pelo campeonato grego, que também é complicado, em Espanha tivemos duas experiências, mas em Inglaterra é, realmente, diferente. É uma adaptação difícil para nós, latinos. Acho que, no primeiro ano, tivemos a sorte de sermos muito solicitados a nível de jogos e essa experiência acabou por não ser tão dolorosa. Mas, viemos quase todos sozinhos, sem família, e esse é o primeiro impacto que as pessoas têm. A falta da família. Depois, aqui em Inglaterra, realmente, é muito frio. O nosso primeiro ano foi o mais rigoroso. Com muita neve. Por exemplo, em todos os campos de treino e nos estádios, os relvados são aquecidos. Senão seria impossível praticar futebol no inverno. Mas, acima de tudo, o que a maior parte das pessoas sente, e o que é mais difícil, é às três da tarde já ser noite. A falta de luz é o mais difícil de lidar, para nós, no dia-a-dia.
Contacto com a comunidade local
O nosso contacto com a cidade é muito reduzido. O contacto que temos com as pessoas é nos dias de jogo. É quando existe uma proximidade com o público. Quando chegamos ao estádio. Mas no nosso dia-a-dia há muito pouco contacto com a cultura local. Mesmo os ingleses em si, o natural deles é, a partir das quatro-cinco horas, estarem em casa. Há poucas saídas a restaurantes, etc..
Vibração especial do adepto inglês nos dias de jogo
Quase todos os clubes têm uma ligação muito grande aos seus adeptos. Nós sentimos isso aqui. Sentimos que existiu um Wolverhampton com muita história, que passou por um momento difícil, em que desceu às divisões secundárias. Mas a partir do momento em que existe sucesso, volta a existir essa ligação e essa paixão dos adeptos. Aliás, eu tive a oportunidade de ter os meus dois filhos a viver comigo aqui, durante algum tempo, e para mim ter uma reunião com um professor e ele dizer-me “eu queria agradecer-lhe muito o trabalho que estão a fazer aqui, pelo clube”, é um tipo de agradecimento que não é normal. Como digo, este é o nosso trabalho, é a nossa “obrigação”, e temos muito orgulho em fazê-lo, mas existe muito este agradecimento. Aliás, mesmo o próprio Nuno já foi reconhecido com um Doutoramento Honoris Causa pelo trabalho que desenvolveu no clube e na cidade.
Festejos efusivos da equipa técnica
Acho que é um bocadinho a nossa cultura de latinos. Inicialmente, esse nosso festejo foi interpretado como uma falta de educação. As pessoas não percebiam aquele momento de emoção, a adrenalina, a paixão que sentimos pelo jogo. Simplesmente, esse é o momento de maior união e de festejo enquanto equipa técnica. Acho que começou num jogo fundamental para nós, uma vitória fora, em que sentimos que aquele tinha sido o momento de maior alavancagem para a subida de divisão. E, portanto, desde então, em cada golo que marcamos mantemos esse festejo, apesar de, por vezes, não sermos tão efusivos como naquele momento. Às vezes, em determinados jogos, vemos o treinador principal a querer festejar com alguém, ou a festejar sozinho, e não haver ninguém que se aproxime para festejar com ele parece assim um bocado esquisito para nós.
Dia típico da equipa técnica
O nosso dia normal será chegar ao clube por volta das 8h30. O treino começa às 10h30, com todas as rotinas que são prévias, desde o pequeno-almoço, às ativações e ao controlo médico. Depois temos as rotinas normais. Quando o treino finaliza, nós, equipa técnica, fazemos uma reunião curta, só para sabermos se é preciso ajustar alguma coisa antes de os jogadores irem embora. O almoço é obrigatório no centro de treinos para equipa técnica e jogadores. Começa por volta das 12h30 ou 13h00. A partir daí, exceto se existir a necessidade de algum trabalho mais individualizado com algum jogador, termina o dia, a não ser que seja treino bi-diário. Nós, equipa técnica, normalmente almoçamos, reunimos após o almoço para avaliar o treino desse dia e programar o do dia seguinte. Naturalmente, muitas vezes juntamo-nos para jantarmos todos, sobretudo se há um jogo de seleção ou uma paragem para jogos internacionais. Agora não tanto, porque o COVID não permite.
A vida em dias de folga
Alguns colegas iniciaram aqui a aprendizagem do golfe, que é um desporto muito praticado cá. Da minha parte, estou neste momento a fazer o nível UEFA PRO/Grau IV. É um curso que obriga a produzir bastantes trabalhos e, por isso, aproveito o tempo livre para tentar fazer isso ao máximo. De resto, por vezes vamos visitar a cidade mais próxima, que é Birmingham. No meu primeiro ano, tentei deslocar-me por Inglaterra e conhecer o país. Outras vezes, tentamos ao máximo ver outras equipas.
Equipa técnica diferente
Hoje é diferente, sem dúvida. Em grande parte, acho que para melhor. Quando viemos para cá, saímos do FC Porto. E o nosso primeiro pensamento, enquanto equipa técnica, foi que se nós transferíssemos exatamente a mesma equipa do FC Porto e a mesma maneira de treinar para a Championship, seriamos, provavelmente, campeões. Portanto, a nossa ideia foi, “se nós conseguirmos trazer qualidade, nós vamos conseguir ter sucesso”. Basicamente tentámos fazer esta comparação. Durante o nosso crescimento enquanto equipa técnica, acho que percebemos que, sim senhor, é preciso ter qualidade, mas ao mesmo tempo é importante ter a agressividade e a consistência defensiva que o próprio campeonato exige. E então, foi uma mescla de jogo com qualidade, com jogadores capazes e conhecedores do que é a liga inglesa.
O jogador português em Inglaterra
O jogador português é muito conhecedor do jogo. Normalmente, o jogador inglês privilegia mais os atributos do que o conhecimento, embora agora a formação esteja a mudar essa mentalidade. O jogador português tem muito conhecimento de jogo. Sabe o que se passa em cada momento do jogo. E isso são vantagens muito grandes. Se conseguirem associar isso, o que é fácil porque depende da vontade deles, à intensidade, então conseguem, claramente, ser uma mais-valia para o futebol inglês.
Adaptação dos jogadores portugueses
O facto de estarmos a jogar constantemente – sábado, terça, sábado, terça – obrigou-os a subir um nível. Da nossa parte, a necessidade que tivemos foi torná-los robustos o suficiente para aguentarem essa exigência. Tem mais a ver com a preparação física. Temos uma pessoa, que é o António, que trabalhou connosco no FC Porto e que faz um planeamento mais individualizado com eles ao nível da prevenção de lesões e do aumento de robustez.
O respeito pelo jogo no futebol inglês
Há uma outra coisa que temos de nos adaptar ao futebol inglês. Que é o respeito pelo jogo em si. Quando vamos para um jogo, sabemos que vamos para um jogo pelo jogo de futebol. Não existe qualquer tipo de interferências para além do jogo. Por exemplo, uma regra muito simples, que muita gente desconhece, é que o futebol em Inglaterra só tem uma bola por jogo. Não existe interferência do apanha-bolas. A bola vai ao público e regressa naturalmente, bate num placard e regressa naturalmente… Existe muito esse respeito. Há o respeito pelos horários, há o respeito pelos árbitros, há o respeito pela comunicação social. Ou seja, basicamente eu acho que toda a gente respeita muito o que foi este produto criado pela Premier League. E, se calhar, por isso tem o sucesso que tem. Enquanto equipa técnica, nós também crescemos muito com isso. Por exemplo, durante o jogo existe uma discussão normal com o árbitro, e que ele compreende, desde que não seja desrespeitosa. Existe uma discussão normal com o banco da equipa contrária, que eles compreendem. Por isso, no final do jogo toda a gente se junta para discutir o jogo normalmente. Posso dar um exemplo: os árbitros costumam receber-nos no balneário se nós quisermos discutir o porquê de uma determinada decisão deles. E para nós treinadores, tudo fica mais claro. Tudo fica mais óbvio, sem preconceitos, sem dúvidas.
Tempo útil e ritmo de jogo na Premier League
Passa muito pelo facto de todos os intervenientes no jogo tentarem fazer o mesmo. Para que o jogo seja o melhor espetáculo possível. Os árbitros estão educados nesse sentido, sabem que o jogo é para ser jogado. Não é para se marcar faltas. Aliás, toda a gente já está tão familiarizada com isto que toda a gente aceita. Eles sabem que, se calhar num espaço de cinco minutos, não podem marcar três faltas seguidas. Mesmo que a falta tenha existido. Mas o jogo é para jogar. Às vezes, em determinados momentos, nós estamos a ganhar 1-0 e queremos que o jogo abrande nos últimos minutos, ou pause, mas até o público não o permite. Os nossos próprios jogadores já estão com esse espírito e não param. Às vezes, nós, cá fora, dizemos para eles irem com calma, mas não vale a pena. Este espírito já cresceu. Realmente o jogo é para ser jogado. Se calhar por isso é que, em Inglaterra, acontecem tantos golos nos últimos minutos de jogo e reviravoltas nos tempos de descontos. Porque torna-se quase impossível parar este estilo de jogo.
Trabalho para a adaptação dos jovens jogadores
É difícil. Em primeiro lugar, temos um excelente balneário. Existe uma harmonia muito grande entre eles e com a equipa técnica também. Ou seja, conseguimos criar aqui um ambiente que é favorável a esse tipo de crescimento. Quem chega facilmente se sente confortável. Depois, acho que é mais fácil para um jogador que chega encontrar um processo definido. E quem é responsável por dinamizar esse processo não são os jogadores jovens que chegam, mas sim uma base já madura. E isso torna sempre mais fácil o crescimento. Mas temos um tempo. E temos alguns exemplos, como o Leander, que quando chegou já tinha alguma maturidade, mas teve o seu tempo de adaptação. Como teve o Pedro Neto, que chegou jovem, teve o seu tempo de adaptação, e agora já começa a tornar-se mais numa parte da base do que, propriamente, aquele jogador jovem que está a chegar. É importante que o jogador jovem não chegue com a responsabilidade de ter que ser ele quem tem de assumir de imediato… E, obviamente, nós também estamos a escolher jovens com um determinado perfil, para encaixarem num processo que já está em andamento.
Dificuldades impostas pela pandemia
Às vezes brincamos um bocadinho e dizemos que nós já estamos habituados, porque já estamos em confinamento há quatro anos. Raramente saímos de casa, a não ser para ir para o centro de treinos. Mas, do que realmente mais sentimos falta é do público. Porque tínhamos uma atmosfera que estava criada e que impulsionava a equipa. E a falta do público sentiu-se bastante. Acho que ao nível do trabalho, inicialmente foi difícil. Porque foi uma situação completamente nova para nós. Criarmos exercícios para trabalhar individualmente com os jogadores. Tentar, ao mesmo tempo, simular o que é o jogo só com um jogador é quase impensável. Depois passamos disso para grupos de cinco. O que voltou a obrigar-nos a criar exercícios para… Mesmo nós criávamos estruturas diferentes e tentávamos construir equipas com base nessas estruturas.
Ausência do público nos estádios
Eu tinha a experiência da Grécia, onde jogávamos muitas vezes à porta fechada. E nós sabíamos o quão esquisito aquilo era. Uma das nossas armas para o jogo foi tentarmos fazer com que os jogadores da nossa equipa fossem o mais comunicativos possível entre eles. Ou seja, que a voz dos nossos jogadores se sobrepusesse à dos da equipa contrária. E conseguimos mesmo dinamizar esse processo em treino. Felizmente temos, a esse nível, um jogador como o Coady que faz ouvir a voz dele em todo o campo. Mesmo nós, equipa técnica, tentamos dar instruções muito mais alto do que a equipa contrária. Uma das vantagens que nós temos, e que eu nunca tinha pensado nisto antes da pandemia, é o facto de conseguirmos perceber as instruções que a equipa contrária está a dar e nós termos a possibilidade de falar em português. Coisa que eles nunca vão perceber. E, muitas vezes, se estivermos atentos ao banco da equipa contrária, conseguimos entender o que é que aquele treinador está a pretender naquele momento e, imediatamente, tentamos corrigir algum posicionamento nosso. Basicamente, tentamos, nestas adversidades, criar o maior número de vantagens para nós. Mas, sem dúvida, sentimos falta do público.
Apoio fora do estádio antes dos jogos
Não existe. Penso mesmo, não tenho a certeza, que esses ajuntamentos aqui serão ilegais. Portanto, para nós, temos este sentimento. Neste momento, existe pouca diferença entre jogar em casa ou jogar fora. A falta de público faz com que as equipas cometam mais erros do que, normalmente, cometeriam. A pressão de falhar já não parece tão grande como quando existiam os adeptos. Provavelmente, os jogadores arriscam mais. A equipa de arbitragem, também, estará a tomar melhores decisões. Porque não estão a existir tantas influências externas no momento de decisões mais duvidosas, como num lançamento de linha lateral duvidoso e em que o público, se calhar, consegue interferir. Sentimos, também, que quando as equipas estão a perder sentem a falta do público para conseguirem virar um resultado. É mais difícil.